sexta-feira, 3 de abril de 2009

MARLY DE OLIVEIRA


Marly de Oliveira (Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo 1935. Faleceu em 1 de junho de 2007, no Rio de Janeiro) foi uma poetisa brasileira. Era a ex-mulher do poeta e membro da Academia Brasileira de Letras, João Cabral de Melo Neto. Foi também professora de língua e literatura italiana e de literatura hispano-americana.


Nascida em Cachoeiro do Itapemirim- ES, fez seus primeiros estudos em Campos dos Goytacazes - RJ. Poeta e professora de língua e literatura italianas e de literatura hispano-americana. Publicou, entre outros, os livros: Cerco da Primavera (1957), Explicação de Narciso (1960), A Suave Pantera(1962), A Vida Natural e O Sangue na Veia (1967), Contato e Invocação de Orpheu (1975), O Mar de Permeio(1998) e Uma vez, sempre (2000).

"Na longa fala de sua importante obra, Marly vem tecendo e consagrando os seus próprios mitos fundamentais. Desde o primeiro livro de poemas, (...) ela trabalha e retrabalha uma só iluminação central, multiplicada e projetada sobre horizontes de significados que tanto mais se alargam quanto mais nítida, precisa e despojada se torna sua peculiar dicção. Por isso, o percurso de Marly, mágico e pendular, retoma sempre o princípio de tudo ('o erro nunca está no fim: / no início é que é preciso / ir desfazendo o escuro'), anula a aridez das lembranças e conflitos pessoais ('por mais que se ande, o caminho / leva sempre para trás'), até chegar à escrita revelada de uma poesia que submete o sofrimento da perda, a amargura do engano, a frieza da aridez ao 'império da esperança' e ao chamado do amor (...)." MÁRIO CHAMIE

“ A Poesia, no Brasil, de linhagem feminina já de algum tempo - com algumas grandes Poetas - se fizera poesia de linhagem poética, sem mais epítetos. Marly de Oliveira é dessa linhagem, quintessenciada.”. ANTÔNIO HOUAISS
Marly construiu sua poesia vivenciando as mais elevadas virtudes de persona: extrema simplicidade e singular humildade. A iluminar essas premissas, lancemos as luzes emanadas da indiscutível Clarice Lispector: “Trata-se de um dos maiores expoentes de nossa atual geração de poetas, que é rica em poesia (...) Basta, porém, ler Marly para admirá-la, respeitá-la e, o que é tão importante, amá-la”. DONALDO MELLO



RETRATO DE MARLY DE OLIVEIRA
(Soneto de Bruno Tolentino)

O mármore moreno, a calma estela,
o que mal se pressente e só murmúrio,
a lenta floração, a flor interna,
o sumo breve e brando e alto e uno

deram-se as mãos à flautas e à serestas
mais doces, mais recessas, mais sem rumo,
e à volta de seu corpo (ou sua pluma)
tecendo vão seu chão de coisa aérea.

É ela, a fonte alada, a asa da pedra,
o veio diamantino de diuturno,
a síntese volátil sem o mundo,
e, onde quer que a conduzam, a mesma, a eterna.
Que mais dizer que coroasse aquela
que, tão mais voz que face, é fluída? Bela?




POEMAS*

I

Somos nós a verdade do que existe,
somos nós, meu amor,
A nossa vida breve ampara a vida
das coisas, que persiste.
De que valem os vértices dourados
dos montes, se os não virmos?
Águas, campos e verdes sossegados
que a fina brisa alisa?


II

Estes montes, que nunca vestiu neve
ampla sombra derramam pelo campo,
onde andam sossegados sobre a relva
que não existe na paisagem calma,
rebanhos silenciosos que eu só vejo,
mergulhada no sonho de existir.
Mas que sei de viver e de existir?
Uma luta entre o fogo e a fria neve,
entre aquilo que vejo e o que não vejo,
o debruçar-me sobre qualquer campo,
se a noite vem e vem com ela a calma
do que nem sei se existe sobre a relva.
A verde, frouxa e tão mais fria relva,
que cobre, sombra e sonho, esse existir
por trás do que aparenta apenas calma,
e é lento fogo transformado em neve,
arder de estio sob o frio campo,
que só eu mesma posso ver e vejo.
E sinto com meu corpo, mais que vejo,
deitada sobre inexistente relva
de um real, silencioso e verde campo,
sobre o qual as janelas do existir
se abrem de manso como pousa a neve
sobre o alto cimo da montanha calma.
E cai de mim a mim a sombra calma
de alguma coisa que não sei se vejo
e se confunde com estoutra neve
que livre deixa o monte e a fresca relva,
e nem por isso acaba de existir
em mim que me contento olhando o campo;
que aspiro a suavidade que há no campo,
aquela paz sem fim, aquela calma
que não dói nem assusta de existir,
e afundo na umidade do que vejo,
apoiada no sonho dessa relva
que nem existe sob a fria neve.


III

Hoje não vou colher
nem laranjas, nem flores, nem amoras.
Vou ver crescer o dia
no redondo das frutas,
e ouvir sem pressa o canto destas aves.
Serão as mesmas de ontem?
Um dia a mais que fez de mim, que faz?
E as aves que cantavam,
se não são estas, onde
estão? O canto apenas se repete?
Aquela que ontem via
o que ora vejo} não é mais em mim?
Então eu me renovo
como as águas e as plantas?
Sou outra} ou me acrescento ao que já sou?
No entanto, é tudo igual,
embora eu saiba que só na aparência;
e meu prazer me vem
de estar sentada aqui,
detendo um tempo que se não detém.


IV

Na tarde sem soçobro o azul instala
sobre as coisas um líquido silêncio,
e a mim me deixa só, desapartada,

na observância fiel de um obsidente
solilóquio amoroso, propiciado
por tua ausência e minha infausta mente.

Do jugo não imposto e incerto estado
ninguém me livra, que este mal de agora
ainda é o bem em mal transfigurado

por obra de distância e da memória,
não do acaso ou do sonho, não da sépia
que às vezes cobre o chão de melancólicas

paisagens. Que noturnas, vãs, repletas
formas criadas pelo imaginar
venturoso (que nem o sonho aquieta)

sobem de mim a ti, crescem no ar,
sem perguntas, propósitos, certezas,
e enrolam-se em si mesmas devagar,

impregnadas de límpida escureza.
Em torno a solidão não desampara,
antes fecunda a antiga natureza

que dorme a tanto mito entrelaçada.


v

Quando flores e nuvens,
mosaicos de silêncio repentino,
frescos vales e montes,
onde a erva cresce e o gado se apascenta,
e o rio sua prata
oferece gentil, à móvel brisa
de sede sossegada,
quando tudo o que tenho for lembrança;
que será do que vejo,
se a mais fiel memória transfigura
o que lembra? No entanto,
o mesmo milho crescerá no campo,
repetindo o ritual
de há milênios; as mesmas-outras águas
espelharão no dorso
de vidro movediço os mesmos ramos.
Estas serão as árvores,
as verdadeiras, íntegras, antigas,
que só com o pensamento
eu não alcançarei em plenitude

de silêncio e de vida.
Pois uma coisa é ter, outra, lembrar.
Uma coisa é viver,
viver em bruto, o sol dando na pele,
o vento levantando
cortinas de esperança e esquecimento;
outra coisa é criar.
Criar quase prescinde do que existe.
O que existe é somente
um rascunho ou um ponto de partida.
Enquanto posso, vivo
a fértil realidade destes longes.
Laboriosa construo
com este mel, para os futuros sonhos, aprazível morada.


Epigrama

Bom é ser árvore, vento:
sua grandeza inconsciente.
E não pensar, não temer.
Ser, apenas. Altamente.

Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte.
Com o mesmo rosto tranqüilo
diante da vida ou da morte.


(Poema publicado originalmente na Revista de Cultura Brasileña,vol. 36, diciembre 1973, p. 61-71)


O sangue na veia

XXV

Escrevo; logo, sinto, logo, vivo,
e tiro-lhe ao viver a indisciplina
que o espraiaria, que o dispersaria,
e dou-lhe a minha forma comedida,
a que tem o tamanho de um amor
que eu guardo, que não gasto, não disperso;
amor que se concentra em dura pérola,
não pétala, não isto que é um excesso,
pois que pode voar; o que me fica
de tudo o que acontece e não se altera,
de tudo o que acontece e me escraviza,
e do que escravizando me liberta.
Escrevo; logo, sou quem se domina,
e quem avança numa descoberta.


O sangue na veia

XXII

Eu caio em ti como uma bruta pedra
na água, no amor não me dissolvo, o amor
não me absolve, estou (quem nos governa,
quem nos arrasta à guerra ou ao repouso)
colada a quê, um copo sobre a mesa,
menos que o copo, o fundo desse copo,
e, não obstante, para sempre presa,
pois o que basta é tudo o que não posso,
pois o que basta é tudo o que me exige
uma violentação do que, por dentro,
é o meu mundo, essa coisa indefinível
e tão concreta, mas que não conheço,
e às vezes temo que me paralise.
Viver é submeter-se, eu me submeto.


O sangue na veia

XXIII

Avançar no viver já significa
coisa mais ampla, coisa que mais vale;
assim como o embrenhar-se numa selva
nos cobre de uma súbita humildade,
humildade que leva a sua grandeza
em si como no bojo de um navio,
e como se isso fosse exterior
e simples, como não se ter sentido,
no escuro de uma selva, do que é nosso:
por efeito de amor então me alargo,
consciente de mim, do que não posso,
e da fraqueza do meu desamparo.
Embora fique em mim, não me dissolva,
e tenha a minha raiva, a minha escolha.


O sangue na veia

XVIII

A força que há na luz, não sua ausência,
pode ser a origem mais secreta
do escuro em que afundamos de repente:
por excesso de luz, eis que estou cega,
por excesso de amor, eu não entendo
- o farfalhar macio, a crua seda -
­aquilo que nos move, e que ultrapassa
o limite de tudo o que sabemos.
Por excesso de dor eu me humanizo,
eu me faço pequena e tão real,
nos tornamos serenos, silenciosos,
tão reais e inocentes e macios,
que essa luz que não vemos é demais.
Mesmo ser é um excesso em que caímos.


ELEGIA

Teu rosto é o íntimo da hora
mais solitária e perdida,
que surge como o afastar-se
de ramos, brando, na noite.
Não choro tua partida.

Não choro tua viagem
imprevista e sem aviso.
Mas o ter chegado tarde
para o fechar-se da flor
noturna do teu sorriso.

O não saber que paisagens
enchem teus olhos de agora,
e este intervalo na vida,
esta tua larga, triste,
definitiva demora

*Poemas transcritos do livro Contato (Marly de Oliveira) e do encarte do Cd Mãos Dadas ( seleção e interpretação de Lauro Moreira)




POEMAS EM ESPAÑOL

(Poema publicado originalmente na Revista de Cultura Brasileña,vol. 36, diciembre 1973, p. 61-71)
(Obs. No incluye el nombre del traductor de los textos)


POEMA


I

Somos nosotros la verdad de lo que existe,
somos nosotros, mi amor;
es nuestra vida breve la que ampara la vida
de aquello que perdura.
?De qué valen Ios vértices dorados
de los montes, si no los vemos;
aguas, campos y verdes sosegados
que peina la brisa?


II

Estos montes que nunca ha vestido la nieve
amplia sombra derraman sobre el campo
por donde, sosegados, en Ia hierba
que no existe, pacen rebanos silenciosos
que sólo yo veo
sumergida en el sueno del vivir.
?Mas qué sé yo de vivir y de existir?
una lucha entre fuego y nieve fría,
entre 10 que veo y no veo,
asomarme a un campo cualquiera
si se acerca la noche y con ella la calma
de lo que ni sé si existe sobre la hierba,
la verde, tierna y fría hierba
que cubre, sombra y sueno, ese existir
tras de lo que aparenta, apenas, calma
y es fuego lento transformado en nieve,
arder de estío sobre el campo helado
que sólo yo alcanzo a ver y veo.
Y siento con mi cuerpo, más de lo que allí veo,
echada sobre esa hierba que no existe
de un silencioso y verde campo
sobre el cual las ventanas de la vida
se abren despacio, como al caer la nieve
sobre la calma cima de los montes.
Cae de mí, sobre mí la calma sombra
de algo que no sê si veo
y se confunde con esta otra nieve
que deja libre el monte y la fresca hierba,
y ni aun así acaba de existir
en mí, alegre de mirar el campo;
que aspiro así la suavidad del campo,
aquella paz sin fin, aquella calma
que no duele ni asusta de vivir,
y me hundo en la humedad de lo que veo,
apoyada en el sueño de esa hierba
que ni existe, tal vez, bajo la nieve.


III

Hoy no voy a coger ni naranjas,
ni flores, ni moras.
Veré crecer el día en la redondez de las frutas
y escucharé, sin prisas, el canto de las aves.
?Son las mismas de ayer?
?Qué ha hecho de mí un día más?; ?qué hace?
Si no son estas aves
las que ayer cantaban, ?dónde están?
Sólo el canto es el mismo.
?Lo que veía ayer,
Lo que ahora veo ya no está en mí?
?Acaso me renuevo
como el agua y las plantas?
?Soy otra o acreciento la que soy?
Pero todo es igual
aun cuando sé que sólo en apariencia;
y mi ventura nace
de estar aquí sentada
reteniendo ese tiempo que jamás se detiene.


IV

En la tarde, el azul instala mansamente
un líquido silencio de luz sobre las cosas
y a mí me deja sola, como aislada

en la observancia fiel de un obsesivo
soliloquio amoroso que propicia
tu ausencia y tu memoria desdichada.

Del voluntario yugo y la incerteza
nada me salva, que este mal de ahora
es sólo un bien en mal transfigurado

por obra del recuerdo y la distancia,
no del sueño, no del acaso ni del velo
que a veces cubre el mundo de nostálgicos

paisajes. !Qué nocturnas y densas y qué vanas
formas creadas por ese venturoso
imaginar, que ya ni el sueño calma,

suben de ti hacia a mí, se crecen en el aire
sin preguntas, ni anhelos, ni firmezas
y, despacio, se enredan en sí mismas

!impregnadas de limpia oscuridad!
En torno la soledad no desampara
y hace fecunda Ia naturaleza

que duerme, a tanto mito entrelazada.


v

Cuando flores y nubes,
mosaicos de silencio repentino,
frescos valles y montes,
donde crece la hierba y apacienta el ganado
y donde el río ofrece
su plateado ser a la ágil brisa
de sosegada sed;
cuando lo que ahora tengo sea recuerdos,
?qué habrá de lo que hoy veo
si la más fiel memoria transfigura
lo que recuerda? Y, no obstante,
el mismo trigo crecerá en el campo
repitiendo un ritual
de milenios; las mismas-otras aguas
empañarán su dorso
de vidrio movedizo, con esas mismas ramas.
Estos serán los árboles,
los verdaderos, íntegros, antiguos,
que con el pensamiento
no alcanzo a ver en esa plenitud
de silencio y de vida.
Que una cosa es tener; recordar, otra.
Vivir salvajemente,
el sol sobre la piel
y el viento levantando
cortinas de esperanzas y de olvidos.
Y otra cosa es crear;
creación es olvidar lo que ya existe,
pues lo que existe es sólo
un ensayo o un punto de partida.
Y, en tanto puedo, vivo
la fértil realidad de lo lejano;
laboriosa, construyo
con esta miel, para futuros sueños apacible morada.



Obras:
Cerco da Primavera (1957)
Explicação de Narciso (1960)
A Suave Pantera (1962)
A Vida Natural (1967)
O Sangue na Veia (1967)
Contato (1975)
Invocação de Orpheu (1978)
Aliança (1979)
A Força da Paixão e A Incerteza das Coisas(1982)
Retrato / Vertigem / Viagem a Portugal(1986)
O Banquete (1988)
Obra Poética Reunida (1989)
O Deserto Jardim (1990)
O Mar de Permeio (1998)
Antologia Poética (1998)
Uma vez, sempre (2000).

Prêmio:
Venceu, em 1998, o Prêmio Jabuti com "O Mar de Permeio".

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