quarta-feira, 10 de junho de 2009

Histórias de Rubem Braga


“...Mergulho nesse mundo misterioso e doce e passeio nele como um rei arbitrário que desconhece o tempo....
...são dezenas, centenas de lembranças graves e pueris que desfilam sem ordem, como se eu sonhasse.
Entretanto uma parte desse mundo perdido ainda existe e de modo tão natural e sereno que parece eterno; agora mesmo chupei um caju de 25 anos atrás...
Rubem Braga “Em Cachoeiro”- 1947


“O raro dom de tornar qualquer assunto interessante vem desde os tempos de menino”, afirma a irmã caçula de Rubem Braga– única memória viva dos 13 filhos de seu Francisco e D. Rachel Braga. Entre fotografias antigas, livros e recortes de jornal , D. Anna Graça Braga de Abreu não tem dúvidas de que a sensibilidade e o estilo poético contido na crônica do irmão está intimamente relacionado com a vivência de uma infância alegre, cercada pela natureza exuberante de sua terra natal.
D. Gracinha, como é carinhosamente chamada, fala com orgulho de toda a família, mostrando o quadro - pintado por ela- que retrata a “Casa dos Braga”(hoje restaurada pela prefeitura local, funciona como Centro Cultural e Biblioteca Municipal).


Nascido e criado neste casarão de 400 m2, cercado de árvores frutíferas no jardim, Rubem Braga teve uma infância pontuada pelos prazeres comuns de todos os meninos criados com liberdade nas cidades interioranas. Jogar futebol era a diversão favorita. As pescarias no córrego que atravessava a cidade, caçar passarinhos e subir nas árvores para arrancar e comer as frutas também faziam parte das atividades que mais lhe davam prazer. Com a voz embargada pelas lembranças, D. Gracinha, ao lado do filho Afonso, gosta de folhear os livros do irmão famoso. As melhores estórias da época vivida em Cachoeiro foram retratadas em crônicas. Aos poucos, a dor da saudade de um passado que não volta mais é substituída pela serenidade imortalizada através das estórias registradas por Braga. A melancolia é logo substituída pela doce alegria de quem se permite deixar levar pelo “túnel do tempo”...A lágrima que insistia em escorrer é vencida pela força deste “universo literário” tão presente. O “passado”,principalmente para a família Braga, existe de modo especial: foi “eternizado” em sua obra . A voz da irmã retoma o tom firme e descontraído. Ela chega a rir ao falar sobre algumas estórias que o irmão retratou com “clareza e precisão de detalhes”: “O Rubem só trocava o nome dos “personagens”, mas tudo o que ele narra nas crônicas aconteceu de verdade”.
Entre as (muitas) crônicas , a irmã não “elege” nenhuma como”favorita”:“Gosto de tudo o que ele escreveu!”... Mas não deixa de citar algumas. Em “Lembrança de Zig”, por exemplo, Rubem fala do cachorro dela, um vira-lata conhecido por todos na época como “Zig Braga”. O irmão se divertia muito com o cachorro, que costumava “atacar” todo mundo que usava uniforme. “Tínhamos pena do carteiro”, diverte-se ela.
O saudosismo e as lembranças de um passado feliz, aos poucos, vem vindo à tona na memória de D. Gracinha . Com firmeza, ela conta a implicância que o irmão e os amigos tinham com seis irmãs que moravam na casa vizinha. Rubem se referia a elas como “nossas inimigas”. Todas as vezes que eles jogavam futebol na rua, as irmãs “inimigas” implicavam com o barulho.Certa vez, chegaram a furar-lhes a bola. Rubem não era chegado a brigas. Não gostava de causar aborrecimentos aos pais. Como forma de “extravasar” seus sentimentos, sua única –e melhor- “arma”era a caneta e o papel: esta rixa, por exemplo, foi ‘desabafada” através da crônica “Praga de menino” .
O “pequeno” Braga também adorava subir em árvores. A preferida era o cajueiro que ficava no alto do morro, atrás da casa dos pais, que também mereceu um texto especial, “O Cajueiro”.
O sobrinho Afonso, que morou um período com o tio no Rio, gosta de relembrar outra estória que deu origem à crônica “A moça rica”. A moça em questão era uma cachoeirense que estudava no Rio e costumava passar as férias em sua cidade natal. Tinha hábitos considerados “avançados” para a época . “Ela era mais velha e gostava de ir pescar com os meninos. Numa dessas pescarias, a moça tentou uma “aproximação mais íntima” com o Rubem. Ele era muito ingênuo naquela ocasião e acabou ficando “assustado” com o “assédio”, conta o sobrinho, com um sorriso maroto de quem conheceu o tio já adulto .”Apesar de reservado e discreto, Tio Rubem era muito “mulherengo”, revela rindo.

Rubem Braga era introspectivo. Apesar de sempre bem-humorado, a timidez o fazia passar por antipático entre muitos que não o conheciam. Sempre gostou mais de observar do que falar. Expressava-se com mais desenvoltura e intimidade “escondendo-se” atrás de seus textos. Começou cedo a usar o “papel”para externar toda a percepção do mundo que observava à sua volta.

“Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda...”
Rubem Braga na crônica “ Os trovões de antigamente”.


O passado interiorano de Rubem Braga foi relatado em sua obra de forma sempre poética e nostálgica, reforçando a constatação inicial de D. Gracinha a respeito da importância desta época na vida do irmão - não só refletida em seu estilo, como também marcante na formação da personalidade simples e humanitária do autor.
Descendente de uma família de intelectuais e políticos – seu pai foi o primeiro prefeito de Cachoeiro de Itapemirim- os Braga sempre cultivaram a união familiar e a importância do enriquecimento cultural. Apesar da tradicional erudição, mantinham uma postura simples e discreta.
“Meu irmão gostava muito de conviver com a família”. D. Gracinha cita também o talento do primogênito, o poeta Newton Braga. “ O Rubem sempre gostou de ler o que ele escrevia.” Os passeios de carro com a irmã (e madrinha) Carmosina –a primeira mulher que dirigiu um carro em Cachoeiro- eram motivo de orgulho e prazer. Braga adorava passear pelas ruas da cidade e não se cansava de admirar a mesma paisagem.


A fama de “turrão” foi confirmada pela irmã:“O Rubem sempre teve uma personalidade muito forte. Quando colocava alguma idéia na cabeça, ninguém conseguia tirar”. Relembrando os tempos de colégio, D. Gracinha revela que Rubem não gostava de estudar. Tinha especial “horror” à matemática. Na época do ginásio, com dificuldades na matéria, foi chamado de “burro” pelo severo professor. Sentindo-se revoltado e humilhado, Rubem decidiu que nunca mais voltaria àquele colégio. Contando com a compreensão e apoio do pai, mudou-se de Cachoeiro aos 15 anos. Foi para a casa de parentes, em Niterói, onde concluiu o ginásio.Nesta época, passava todas as férias e feriados junto à família, na casa de praia que mantinham em Marataízes, no balneário capixaba . Anos mais tarde, concluiu a faculdade de Direito, atividade nunca exercida. O jornalismo já fazia parte de sua vida diária, servindo, de modo inconsciente, como um “elo de ligação” com suas raízes.
Segundo trecho de uma carta de Carlos Drummond de Andrade, escrita em 1963, “a clareza de Rubem Braga diante da vida em si é impressionante.O dom de sentir, valorizar e distribuir a natureza como um bem de que andamos todos cada vez mais precisados – eis a lição de Braga : lição de insaciável liberdade e gosto de viver...”
Considerado por muitos como “herdeiro” do estilo humilde de Manuel Bandeira, Braga costumava tirar poesia das “insignificâncias” do cotidiano. Ao falar dos acontecimentos de sua infância em Cachoeiro, podemos perceber com nitidez a melancolia lírica de quem não consegue restaurar os valores éticos que parecem ter ficado perdidos em “algum lugar do passado”....

“....É extraordinário que eu esteja aqui, nesta casa, nesta janela, e ao mesmo tempo é completamente natural e parece que toda a minha vida fora daqui foi apenas uma excursão confusa e longa; moro aqui. Na verdade onde posso morar senão em minha casa?...
Rubem Braga na crônica “ Em Cachoeiro”-fevereiro 1947


Com o dom da escrita percebido desde cedo pelos irmãos mais velhos, Rubem Braga passou a ter suas crônicas publicadas regularmente no jornal da família - “Correio do Sul”- desde os 15 anos. A partir daí só parou de escrever aos 77 anos, quando morreu de câncer, no Rio, no dia 17 de dezembro de 1990, deixando um único filho, Roberto, e 4 netos.

Caso único de autor consagrado que entrou para a história literária brasileira exclusivamente através de suas crônicas, o capixaba Rubem Braga não conferiu apenas nobreza a este gênero literário. Nascido no dia 12 de janeiro de 1913 em Cachoeiro de Itapemirim, o escritor é motivo de orgulho ímpar na cidade. Numa espécie de homenagem ao “filho ilustre”, na logomarca do município consta uma pena de caneta- tinteiro, simbolizando a cultura literária local – que tem na figura de Rubem Braga seu expoente máximo.


O dia 29 de junho tem um significado especial para a família Braga (e para os cachoeirenses em geral). Como primeiro prefeito da cidade o patriarca, Francisco Braga, tornou São Pedro o santo Padroeiro de Cachoeiro de Itapemirim. O dia de São Pedro passou a ser também o dia da Cidade. Trata-se, portanto, de um feriado municipal, onde os festejos cívicos e religiosos vêm se encarregando de eternizar o inestimável legado cultural de Rubem Braga na memória de seus orgulhosos conterrâneos...

“Sempre tenho confiança de que não serei maltratado na porta do céu, e mesmo que São Pedro tenha ordem para não me deixar entrar, ele ficará indeciso quando eu lhe diser em voz baixa:“Eu sou lá de Cachoeiro...”
(Rubem Braga)

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