quarta-feira, 10 de junho de 2009

Cachoeiro de Itapemirim: revelamos a capital secreta do mundo

A prosperidade de Cachoeiro tem origem em fatores geográficos. O município se desenvolveu no último ponto navegável do Rio Itapemirim

No próximo domingo, Roberto Carlos festeja seus 68 anos com uma apresentação na cidade onde nasceu. É o fim de um hiato de 14 anos. Para comemorar, um relógio foi inaugurado na Praça Jerônimo Monteiro, no Centro de Cachoeiro de Itapemirim. Ele marca a contagem regressiva para o show. Essa movimentação acaba por trazer à tona os folclores que cercam a cidade do Sul do Estado, conhecida por um título que deixa claro a mania de grandeza do cidadão de cachoeiro: "Capital Secreta do Mundo".A história mais coerente sobre a origem dessa expressão remete a Vinícius de Moraes. O poeta teria ironizado a cidade do amigo Rubem Braga, durante um encontro no Rio. Resultado, o apelido virou troféu e foi espalhado aos quatro cantos pelo escritor em suas crônicas. Outra versão, muito conhecida na cidade, atribui o batismo ao próprio Rubem.
Cachoeirismo
De uma forma ou de outra, o fato é que os cachoeirenses chamam seus trejeitos locais de "cachoerismo". Os não cachoeirenses - ou não privilegiados, como eles costumam dizer - preferem outro termo: bairrismo. "Religiões" à parte, hoje há um mito cultural, que é tão importante quanto a cidade que o inspirou.
A grandiosidade da cidade pode até ter sido inventada por seus munícipes, mas isso não lhe tira os méritos. No máximo muda-os de lugar. O valor não está na cidade, mas na maneira com que seus filhos olham para ela. Por lá, não há praia para inspirar violões, o rio Itapemirim é barrento e os morros encurtam o horizonte. Além disso, faz calor, muito calor... Mas nada disso é problema.Rubem Braga pintou a cidade de crônica e esse é um bem difícil de ser desfeito. Brincou com o que tinha, é verdade: quem não tem mar fala do rio, de árvores que moram em janela, do velho relógio de parede que hoje está parado no último quarto da Casa dos Braga... Na verdade, ele nunca foi um relógio pontual. Na temporada que passou em Ipanema - na cobertura do cronista - foi até motivo de "cachoeirismos".
- Rubem, seu relógio está atrasado, diziam os amigos
- Não. É que ele marca a hora de Cachoeiro, respondia o escritor, dando ainda mais vazão as tradições locais que começaram oficialmente no dia 11 de março de 1939.
Dia de Cachoeiro
Na verdade, a ideia partiu de Newton Braga. Foi ele quem transformou em ícone local o costume comum de auto-elogios das cidades interioranas. O irmão de Rubem publicou um pequeno texto em um pequeno jornal promocional da Papelaria L. Machado. "Existem poucas cidades no Brasil de um cabotinismo tão bom quanto como o de Cachoeiro. Você esbarra com um cachoeirense fora daqui, o bicho é só saudade", escreveu. Não é para menos que Newton Braga foi o inventor do "Dia de Cachoeiro", que teve sua primeira festa comemorativa em junho de 39. A escolha da data foi coisa pensada. Não se poderia comemorar nada no dia da criação da comarca - o final de março geralmente coincide com o carnaval, além disso é um mês quente para os ternos e vestidos que a ocasião pediria ao longo do tempo. Sobrou para São Pedro. Foi assim que o padroeiro começou a dividir seu 29 de junho com a cidade. A Catedral Metropolitana vive um privilégio semelhante. A igreja divide muros com o "Caçadores Carnavalesco Clube" onde, desde 1941, acontece o Baile Oficial da Festa de Cachoeiro.
Os ausentes
No baile, todos os anos, dois conterrâneos são homenageados. Os costumes que cercam os títulos são o reconhecimento da cidade de que muito de sua notoriedade se deve a quem a deixou. "O ?Cachoeirense Ausente? da noite geralmente é mais badalado que o 'Cachoeirense Presente'. Realmente. Mas há um motivo: não estando em Cachoeiro ele promove a cidade", explica Regina Grafanassi, que participa da organização da festa há 21 anos.
Roberto Carlos foi o "Ausente" de 1969. Pouco antes de subir ao palco - de blusa aberta e medalha no pescoço - para receber a honraria, bateu um papo com um rapaz na secretaria do Clube que lhe servia de camarim improvisado. Raul Sampaio foi falar de uma música sua chamada "Meu Pequeno Cachoeiro". Os dois combinaram um encontro no Canecão (famosa casa de shows carioca) dali duas semanas. Raul levou uma fita. Entregou pessoalmente ao rei. Marcaram no estúdio. Na primeiro encontro, Roberto havia perdido o tape, mas Raul tinha um de reserva. Roberto gravou, mas não gostou do arranjo. Mexeu-se no arranjo. Passada mais uma semana, um diretor implicou com um verso. Raul mudou. "Meu bom jenipapeiro" virou "meu flamboiã da primavera".
"Era o jenipapeiro que eu conhecia do pátio da minha escola, o Liceu. Doeu pra tirar. Eles disseram que jenipapo ninguém conhecida. Mudei, mas antes de ir para o estúdio passei num fruteiro da Praça Mauá e pedi uns jenipapos. Comprei três e levei para CBS. Botei em cima da mesa. Roberto pegou e falou assim: ?É jenipapo bicho!?. Mesmo assim tive que mudar", lembra Raul. A faixa foi gravada no disco lançado pelo cantor em dezembro daquele mesmo 1969. Nessa época, "Meu Pequeno Cachoeiro" já era o hino oficial da cidade e carro-chefe das fanfarras que invadiam o Baile de Gala, avisando o fim da festa e a chegada da manhã.
Raul (Sampaio) é primo de Sérgio (Sampaio) que gravou um disco com outro Raul, o Seixas. Os dois entraram no estúdio em 1971. Um ano depois Sérgio alcançou o sucesso com a marcha rancho "Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua". Teve uma carreira inconstante e problemas com bebida. Morreu em maio 1994, vítima de uma crise aguda de pancreatite, sem realizar seu sonho mais cachoeirense: ter uma música sua gravada por Roberto Carlos. Acabou por preencher uma peça essencial na composição desse folclore da cidade: a cadeira de poeta marginal.
Tradição e futuro
Os cachoeirenses precisam concretizar suas memórias. Num lugar onde a tradição está mais nas pessoas que nos lugares e coisas, o município espera por novos ilustres. O Baile de Gala aguarda novas gerações que não conheceram a cidade em seu tempo de viço. O empresariado local ainda não sabe ser mecena. A cidade da cultura continua sem uma Casa de Cultura. O corpo musical que a cidade viu surgir na metade do século passado teve um lugar para começar: a Rádio Cachoeiro. Sérgio Sampaio e Jesse Valadão eram locutores, Roberto Carlos subia num banco para cantar os sucessos de Bob Nelson. Hoje, onde ecoam as novas vozes?Sim, Cachoeiro pode se orgulhar do seu passado glorioso, mas, no presente, precisa redescobrir seu valor. Não só oralmente, mas em ações. No caso, conservar tradições e não estagnar. Nas últimas eleições, a cidade quebrou um continuísmo político de décadas. Acima do bom ou ruim, votou-se no diferente. "Passamos um bom tempo sem muita coisa, mas agora a cidade parece iniciar um processo de retomada. Mesmo assim, ainda falta muito. Pena que se você não carregar Cachoeiro para fora de Cachoeiro ele não funciona", afirma o produtor cultural cachoeirense João Moraes.
Eles sempre cantaram de galo
Ainda no tempo que briga de galo era uma atividade lícita, Cachoeiro inaugurou sua arena pelas mãos do próprio prefeito de então, Brício Mesquita. Assim, no dia 5 de setembro de 1934, os cachoeirenses passaram, literalmente, a cantar de galo. E o nome do novo espaço de lazer não poderia ser menos modesto: "Rinha da Glória." Neste dia, foram 13 horas ininterruptas de esporadas e gritos. Cachoeiro conseguiu três vitórias, um empate e nenhuma derrota. O cachoeirense "Manda Chuva" venceu o galinácio da capital, o único entre os competidores que sequer teve o nome registrado.
No começo do século XX, essa competição entre Cachoeiro e Vitória ultrapassava os poleiros e era desigual - a favor de Cachoeiro. A cidade era, na verdade, o centro econômico e demográfico do Estado. A oligarquia local queria controlar as cordas da política. Além disso, rumores de que a capital estava no lugar errado ganhavam fôlego com cada nova precocidade dos cachoeirenses. Para eles, o Palácio deveria estar mais próximo do café que o sustentava.A prosperidade de Cachoeiro tem origem em fatores geográficos. O município se desenvolveu no último ponto navegável do Rio Itapemirim. É fruto da expansão da produção de café do Norte do Rio de Janeiro, que chega ao Sul do Espírito Santo no final do século XX. Era o centro escoador de toda produção do Vale do Itapemirim. Ou seja, as sacas não paravam de chegar, e partir. O café ia para o Rio de Janeiro, e acabou trazendo justamente o Rio de Janeiro. A proximidade com a Capital da República acabou por deixar Cachoeiro e os cachoeirenses ainda mais vaidosos.
Aliás, a estrada de ferro que ligou a cidade ao Rio, em 1903, só chegou a Vitória sete anos mais tarde. No mesmo ano, Cachoeiro foi o terceiro município do Brasil a inaugurar sua iluminação elétrica. Além da energia e da locomotiva, símbolos da modernidade, também chegaram primeiro na cidade as ideias republicanas. Já a primazia no movimento abolicionista, não. O motivo: as vésperas abolição, quase setenta por cento de escravos do Espírito Santo estava nas plantações do Vale do Itapemirim. A Lei Áurea, além de não prever indenizações para os coronéis, foi assinada no mês de maio, período que marca o início da colheita. Jornais da época, como "O Cachoeirano", noticiam perdas de até dois terços da lavoura. Claro que isso engrossou o apoio da cidade ao movimento republicano. Em 1888, Cachoeiro sedia o primeiro Congresso Republicano do Estado Espírito Santo. Em novembro do ano seguinte, a monarquia cai.
A eleição de Jerônimo de Souza Monteiro para Presidente do Estado acontece em 1908. O lugar na política Estadual é mantido até o final dos anos 1930. Tudo isso vai por água abaixo com a crise de 1929 e a Revolução de 1930, que coloca Vargas no poder e seus inimigos fora da máquina pública. Os programas de erradicação dos cafezais dos governos Lacerda de Aguiar acaba por minar ainda mais a cultura do café no Sul do Estado. O orgulho de Cachoeiro sempre foi mais falado do que explicado. Seus fundamentos estão nos livros e discos de seus filhos ilustres, mas o folclore também deixou suas pistas na história.
Sempre é tempo de preservar
Fábio Coelho é um homem de planos. Não enxerga um relógio parado, na recepção da Fábrica de Pios Maurílio Coelho. Vê apenas uma relíquia, uma herança de família a ser conservada. O mesmo vale para fabriqueta que seu avô fundou em 1903. Ele quer tocar a tradição para frente, erguer paredes novas, cobrir fios desencapados, fazer um museu, um bar, um estúdio... Até hoje o lugar é o único da América Latina especializado no ramo. Caixas de madeira levam o nome de Cachoeiro e a voz de mais de 30 pássaros brasileiros. "Divulgamos a cidade a mais de 100 anos. A Fábrica tem que reencontrar a cada troca de geração. Continuamos pela tradição".
O ar de lá é mais puro
O bairrismo da cidade acabou ganhando algumas brincadeiras. Prova disso é este brinde distribuído por uma empresa da cidade: ar puro e enlatado de Cachoeiro.
Diz a embalagem:
"O ar...
Primeiro Deus moldou o homem em barro. Mas quando quis dar-lhe vida soprou nas narinas. Era o espírito. E o boneco de barro tornou-se um Homem. E assim foi com Eva e todas as criaturas. O ar...Somos vasos de barro. O que importa é o ar...Nas pessoas. Nos lugares.
Cada região tem um tipo de ar. Cachoeiro de Itapemirim tem um ar diferente. Quem nasceu ou viveu aqui, sabe disso. Eu não sei se emana das águas do rio Itapemirim que corta a cidade cantando. Ou se é o calor do Itabira que iluminado pelo sol, envia seus raios de luz para a cidade. E tudo isso misturado às pessoas, dá o ar de Cachoeiro. É, deve ser...
Por isso, quem sai de Cachoeiro leva esse "ar" às outras pessoas. E, quem fica, mantém esse "ar" em ebulição transformando-o numa chama ardente e no orgulho de dizer: "Modéstia à parte, eu sou de Cachoeiro de Itapemirim!" (Ariette Moulin Costa)".
Sede de elogios
Não é só o ar, mas também a água de Cachoeiro é diferente - melhor. Os conterrâneos que tiverem sede podem matá-la junto à saudade. O ego, pelo menos, vai estar hidratado.
Autor:
Fábio Botacin - A Gazeta

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